A luta pela sobrevivência no campo de refugiados de Edomeni

Após a Macedónia ter decidido fechar parcialmente as suas fronteiras no dia 18 de novembro, a situação em Edomeni continua a agravar-se de dia para dia. Apenas aceita a passagem das suas fronteiras dos refugiados que a Alemanha considera como tal, ou seja, apenas os sírios, os afegãos e os iraquianos. Os restantes refugiados veem-se impedidos de passar. Esta nova política está a criar uma situação insustentável que irá explodir nos próximos dias.
A situação em Edomeni continua a agravar-se de dia para dia. A Macedónia apenas aceita a passagem da fronteira aos refugiados que a Alemanha considera como tal, ou seja, apenas os sírios, os afegãos e os iraquianos
Na madrugada de 3 de dezembro visitei o campo de Edomeni. A primeira imagem do campo foi avassaladora: 32 autocarros estavam estacionados em linha para poderem “largar” os passageiros para depois voltarem a Atenas para irem “buscar” mais. Depois de 6 horas de viagem, os refugiados têm horas de espera pela frente para poderem sair dos autocarros e se instalarem no campo, que já poucas ou nenhumas condições tem para albergar milhares de pessoas. A paisagem é dominada por tendas de campismo ou improvisadas, onde famílias inteiras, e com muitos bebés e crianças, se tentam abrigar contra uma temperatura de 2° graus celsius e um vento que se faz sentir nos ossos.
O ambiente estava tenso. As organizações não governamentais e os coletivos de solidariedade já não têm capacidade para minimizar as carências dos refugiados. A roupa, a comida e os abrigos não chegam para todos, nunca chegaram. A luta pela sobrevivência tomou conta do campo. Os voluntários apenas podem fazer distribuições de comida se tiverem grandes quantidades para distribuir, caso contrário ocorrem episódios de violência entre refugiados, e se um voluntário se intrometer corre algum risco. O desespero é o sentimento predominante no campo.
Para atenuarem a lotação do campo principal, as ONGs e os coletivos de solidariedade decidiram criar dois campos secundários de menor dimensão. Rapidamente ficaram cheios. Não há espaço para tanta gente. Edomeni tem mais de 6 mil pessoas bloqueadas, sendo que 2.500 são refugiados de nacionalidades proibidas de passar, mas continuam sempre a chegar mais e mais em expressos com capacidade para 50 pessoas cada. Chegam dia e noite, a toda a hora. A reação de sobrevivência e de desespero é causada pelas políticas da UE e dos seus Estados-membros. A culpa não é dos iranianos, mas dos líderes políticos europeus e das suas políticas
Após a Macedónia ter decidido construir um muro e fechar parcialmente a passagem a todas as pessoas que não provenham da Síria, Afeganistão e Iraque, os restantes refugiados começaram a desesperar. Os iranianos (com alguns marroquinos e bangladeshianos) decidiram organizar-se e fechar por si mesmos a fronteira do lado grego, barricando-se, ao mesmo tempo que ocuparam com tendas a linha de comboio que faz a ligação entre a Grécia e a Macedónia. São ações políticas orientadas por uma reivindicação muito concreta: abram as fronteiras e deixem-nos passar. Mas se não passam, então os outros refugiados também não. Esta é uma reação de sobrevivência e de desespero causada pelas políticas da UE e dos seus Estados-membros. A culpa não é dos iranianos, mas dos líderes políticos europeus e das suas políticas.
A explosão de um sério conflito está para breve. Não é se, mas quando. A abertura total das fronteiras pelos Estados, mas em primeiro lugar pela Macedónia, é a primeira medida a se tomar para impedir que um novo conflito ocorra novamente e com maior intensidade
Um primeiro confronto entre refugiados era uma questão de tempo. Na tarde de 3 de dezembro ocorreram confrontos com pedras e barras de metal entre os refugiados que não podem passar e os que o podem fazer. 4 pessoas ficaram feridas. A divisão já não se faz apenas com base nas nacionalidades, mas nesta “clivagem”: os que podem passar e os que não o podem fazer. Se os iranianos estão organizados, os refugiados das nacionalidades que podem passar rapidamente se organizarão para romperem com o bloqueio. A necessidade criará a organização. A explosão de um sério conflito está para breve. Não é se, mas quando. A abertura total das fronteiras pelos Estados, mas em primeiro lugar pela Macedónia, é a primeira medida a se tomar para impedir que um novo conflito ocorra novamente e com maior intensidade. Mas as políticas europeia e grega vão no sentido oposto. A partir de 3 de dezembro a Frontex passará a atuar na fronteira greco-macedónica, registando os refugiados e fazendo a distinção entre os que podem passar e os que não o podem fazer. Os segundos serão reencaminhados para os seus países de origem.
Perante esta situação as autoridades governamentais gregas colocaram um dispositivo de segurança, composto por cerca de 50 elementos da unidade de intervenção e da polícia fronteiriça, no campo. No entanto, são demasiado poucos para o conflito que irá ocorrer entre refugiados. A própria polícia não sabe o que fazer: deve reprimir os iranianos e abrir a fronteira? Deve ficar a assistir enquanto os refugiados se agridem violentamente? Que deve fazer? A solução não se encontra num nível micro, mas macro. Edomeni é “apenas” uma peça num grande puzzle. Entretanto, há o sério risco de vidas se perderem nos confrontos se nada for feito.
Perto das 3 horas de madrugada de 4 de dezembro a polícia aconselhou todos os voluntários que deveriam abandonar o campo por entenderem que a situação se poderia descontrolar facilmente a partir daquele momento. Os voluntários acataram o conselho das autoridades, mas com pesar e até com um sentimento de culpa por “abandonarem” os refugiados à sua sorte naquela noite.
Não há esperança em Edomeni, “só” desespero e uma acérrima luta pela sobrevivência. Nada mais.

Artigo originalmente publicado no esquerda.net

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A crise, os refugiados e a solidariedade

Há mais de dois anos que se iniciou a maior vaga de refugiados e migrantes desde a II Guerra Mundial. Por causa da sua posição geopolítica a Grécia é um ponto de passagem para as centenas de milhares de pessoas que tentam alcançar o Norte da Europa, através da travessia do Mediterrâneo ou via terrestre pela Turquia, para sobreviverem à miséria, à guerra e às perseguições políticas e religiosas. É uma travessia em busca de um qualquer futuro.

Grécia, ponto de passagem
Em consequência da posição geopolítica da Grécia, a História do país é uma História de guerras, ocupações e de reconfiguração das fronteiras. É uma História com inúmeros episódios de acolhimento de refugiados e migrantes. Foi assim com as guerras com o Império Otomano e, mais tarde, com a Turquia relativamente a Chipre. Foi assim na década de 90 do século passado após o fim do bloco de leste e o colapso da ex-União Soviética, com a consequente vaga de imigração proveniente da Albânia, Sérvia, Croácia. Mas é também assim hoje com a vaga de refugiados proveniente do Norte de África, África subsahariana e Médio Oriente. Os refugiados e migrantes têm duas rotas, através da Grécia, para chegarem ao Balcãs e depois à Alemanha: 1) a partir do Norte de África tentam atravessar o Mediterrâneo mesmo correndo o risco de perecerem na tentativa, e que já causou mais de 30 mil mortos; 2) ou através da Turquia, navegando em barcos com condições muito precoces em direcção às ilhas de Kos, Lesbos e outras ou atravessando a fronteira turca com a grega a pé.
A incapacidade dos vários governos gregos ficou espelhada nas políticas que encetaram para fazer face aos refugiados. O governo PASOK (2009-2011) e, mais tarde, da coligação ND-PASOK (2012-2014), apoiados pela União Europeia e restantes Estados-membros, encetaram políticas de criminalização e militarização das fronteiras. A primeira baseia-se nos conceitos de “ilegais” e “clandestinos” utilizados nos discursos dos governantes e reproduzidos pelos grandes meios de comunicação social com o objectivo de desumanizar os refugiados e os migrantes, ao mesmo tempo que se contruíram inúmeros centros de retenção com condições que violam a dignidade humana. Por outro lado, a militarização consiste na “protecção” das fronteiras contra uma vaga de indesejáveis, criando muros, valas e vedações nas fronteiras terrestres e operações de patrulhamento e destruição das embarcações “clandestinas” no Mediterrâneo, camuflando-o com um discurso de protecção das vidas humanas. Por exemplo, a Hungria já destacou as suas forças armadas para as suas fronteiras com o objectivo de impedir a passagem dos refugiados até pelo uso da força. Na linha da frente deste tipo de políticas encontra-se a Frontex, uma agência militar europeia encarregada de coordenar os esforços de segurança nas fronteiras da União Europeia recorrendo ao dispositivo militar facultado pelos Estados-membros. No entanto, tem-se começado a assistir a outras duas tendências: a das quotas de acolhimento de refugiados (os migrantes estão excluídos) que cada Estado deve cumprir e o pagamento a Estados fora da União Europeia para travarem a vaga de refugiados e migrantes, tendência que não é estranha na política europeia, pois Berlusconi, ex-primeiro ministro italiano, pagava a Qadafi para impedir que migrantes líbios tentassem chegar à ilha italiana de Lampedusa. Entre as negociatas de recepção de números claramente insuficientes para resolver a crise dos refugiados e migrantes – por exemplo, Portugal apenas irá receber 5 mil refugiados, quando centenas de milhares se encontram na Europa – entre os líderes europeus e o pagamento à Turquia para impedir que os refugiados passem, o problema mantém-se. O objectivo não é resolver a crise, mas apenas geri-la conforme os interesses dos respectivos Estados europeus e dos seus partidos no governo, pois não nos podemos esquecer que os partidos de extrema e direita-radical têm subido um pouco por toda a Europa, o que pressiona os partidos do centro-direita a radicalizarem o seu discurso para não perderem o seu eleitorado. Entrentanto, mais pessoas morrem no Mediterrâneo e com “sorte” passam por situações que violam a dignidade humana.
Mas existe esperança. Não nos líderes europeus, mas nas sociedades civis dos Estados-membros da UE, principalmente nos que se confrontam directamente com a vaga de refugiados e migrantes, como a Grécia. Perante um Estado Social em completo colapso e a generalização da pobreza, os gregos desenvolveram um Estado Social paralelo com base em centros sociais, escolas e clínicas de solidariedade. Um movimento alargado em que o ser humano está no centro das actividades do respectivo colectivo e em que se recusa o assistencialismo, a “caridadezinha” e as leis do mercado para se criarem alternativas de democracia-directa, solidariedade e igualdade. Uma pessoa que requeira ajuda nesses colectivos não é apenas ajudada, é lhe dada a oportunidade de participar na gestão e organização das respectivas actividades. Com a crise dos refugiados e migrantes estes colectivos adaptaram-se para fazer frente às novas necessidades, demonstrando que estes não são inimigos do povo grego, como o Aurora Dourada tantas vezes afirma publicamente, mas aliados, iguais, pessoas também em dificuldades. A unidade faz a força. Assim, estes colectivos estão, em conjunto com algumas organizações não-governamentais, na vanguarda do auxílio aos refugiados e migrantes. O Estado grego demonstrou ser incapaz no cumprimento das suas responsabilidades face aos Direitos Humanos, ao mesmo tempo que foi abandonado, em conjunto com a Itália, pelas instituições europeias e restantes Estados-membros.
A segurança sempre foi o pilar fundamental da estratégia europeia face aos refugiados e migrantes e não o respeito pelos Direitos Humanos, esses serviram, e continuam a servir, apenas para camuflar a prática securitária. Um dos muitos exemplos de como a Europa não reage cabazmente à crise dos refugiados e migrantes é o campo de Edomeni.

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O campo de Edomeni
No domingo, 11 de Outubro, visitei o campo de Edomeni, localizado na fontreira grega com a da Macedónia e o principal ponto de passagem da Grécia para o resto da Europa via Balcãs. Deste ponto, os refugiados e migrantes dirigem-se para o Norte da Europa, passando pela Sérvia, Croácia, Eslovénia, Áustria até chegarem à Alemanha, donde se podem dirigir para o resto do Norte da Europa se assim o quiserem. Fazem milhares de quilómetros a pé, de autocarro ou de comboio, quando estes são fretados pelas autoridades do Estados onde se encontram.
Em Edomeni vi centenas de refugiados. Bebés, crianças, jovens, mulheres e adultos em condições deploráveis, desumanas. Famílias inteiras. Várias gerações. Todos a tentarem chegar ao Norte da Europa para fugirem de guerras, de perseguições políticas e religiosas, de devastações climáticas, do desemprego permanente, da pobreza extrema. Vi sírios, iraquianos, paquistaneses, afegãos. Todos lutam por uma vida, pela sobrevivência. Só segunda, terça e quarta-feira passam pelo campo, montado há apenas três semanas e sem electricidade corrente, 24 mil pessoas. No domingo até às 13h30 já tinham passado cerca de 3 mil, transportados de Atenas para Edomeni por cerca de 80 expressos, e continuavam a chegar muitos mais. Chegam a toda a hora, sem parar. Mas o campo, que apenas possui nove tendas para tudo: cuidados médicos, distribuição de comida e de roupas, locais para comer e descansar, não se pode alargar, pois ao lado encontra-se uma propriedade privada abandonada inviolável, esse princípio sagrado das democracias-liberais. A única coisa que resta aos vários voluntários das ONGs presentes (ACNUR, Cruz Vermelha, Médicos do Mundo, Médicos sem Fronteiras, Praxis, entre outras) sem qualquer apoio governamental, e muito menos europeu, é fazerem o máximo que podem com os poucos recursos que possuem. São medidas paliativas e que não resolverão a crise, mas são fundamentais para muitos refugiados e migrantess. Sem elas estariam completamente abandonados à sua sorte.
O funcionamento do campo é muito simples. Quando os expressos com os refugiados chegam, estes são dirigidos em grupos (cada expresso transporta um grupo entre 50 a 80 pessoas) para a tenda de distribuição de comida e depois para as de descanso. Os refugiados que precisarem de tratamento médico são vistos enquanto se mantêm na fila para a alimentação. Depois de se alimentarem ficam no campo à espera pela vez do seu grupo passar para a Macedónia, o que, conforme a vontade das autoridades fronteiriças macedónias, pode demorar horas. Enquanto aguardam muitos deambulam pelo campo ou dirigem-se para a tenda de distribuição de roupas. Ali pedem sapatos, calças, mochilas, casacos, meias. Frequentemente os voluntários lhes respondem que já não há, que as recolhas do dia já foram todas distribuídas ou que as roupas estão todas molhadas por causa da chuva. A cada nega os voluntários fazem uma cara de desespero, de culpa até, quando sabem que a culpa não é deles, que tentam fazer o máximo que os seus esforços permitem com os recursos que têm. Ao todo o campo conta com cerca de 50 voluntários que fazem turnos de oito horas num sistema de rotatividade. O próprio Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) apenas conta com três técnicos. A organização confronta-se com sérios problemas de financiamento para fazer face a todos os desafios, não apenas na Grécia, mas no mundo.
É frequente ver gregos a título individual dirigirem-se ao campo com sacos cheios de comida e de roupas para darem aos colectivos e às ONGs, mas também carrinhas com bens recolhidos em Salónica pelos vários colectivos. A solidariedade de um povo que passa por uma verdadeira crise humanitária é fenomenal.
As condições sanitárias no campo são muito précarias. As casas-de-banho rondam as trinta e são portáveis. Pelas 11 horas já se encontram inutilizáveis de tão sujas que estão. Com um fluxo tão grande são necessários voluntários que as limpem permanentemente, o que falta. À medida que caminhamos pelo campo confrontamo-nos com um cheiro a podridão, cheiro que advém dos vários caixotes de lixo abarrotados ao lado das tendas de distribuição de comida e das tendas para comer e descansar. Estas também se encontram frequentemente cheias de lixo, pois não são limpas permanentemente, mas no final do dia, quando milhares de pessoas já passaram pelo mesmo local. O descampado à volta do campo encontra-se cheio de água suja proveniente das chuvas da época misturada com lixo. Todas estas deploráveis condições sanitárias são propensas ao aparecimento de doenças como a sarna, pois a par destas condições presenciei um cão com essa doença passar pelo meio dos refugiados. O seu contágio é muito fácil e rápido, agravando a crise humanitária.
O fluxo irá provavelmente aumentar nos próximos tempos, principalmente agora que a Rússia está a intervir directamente no conflito sírio e os Estados Unidos decidiram intensificar o seu apoio, financeiro e logístico, aos rebeldes que apoiam através da Arábia Saudita. O Inverno está a chegar e os refugiados e migrantes encontram-se numa luta contra-relógio, daí os casacos serem tão pedidos por eles no campo de Edomeni, por exemplo. A subregião dos Balcãs tem no Inverno temperaturas que roçam os 0 graus celsius.
É impossível ficar-se indiferente após a visita ao campo. Fica-se sem palavras. Apenas sabemos que a Europa atingiu o ponto mais baixo de sempre. Só isso. Nada mais.

Escrito a partir de Salónica, Grécia.

Artigo originalmente publicadoDSCF2393 na Revista Beira

“Qualquer governo português que tente recuperar a economia dentro das regras atuais está destinado a falhar” – Yanis Varoufakis na Antena 1

“O capitalismo produz crises da mesma forma que produz iPhones”

“Abrir as fronteiras aos refugiados é uma questão de humanidade básica”

“A austeridade é uma cortina de fumo”

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Transcrevo aqui na íntegra a minha entrevista, transmitida hoje na Antena 1, com Yanis Varoufakis. A versão resumida pode ser ouvida aqui e também pode ser lida aqui.

O ex-ministro grego das Finanças esteve à conversa com o jornalista da Antena 1, Frederico Pinheiro, onde aponta a emigração e a estagnação da economia como exemplos do falhanço da austeridade.

Yanis Varoufakis visitou Portugal e, numa aula de Economia em Coimbra, explicou que as políticas de Bruxelas e do Fundo Monetário Internacional aplicadas aos países endividados são como sentenças de morte.

No início do ano era considerado o guru económico de Tsipras, segundo o italiano “La República”. Dez meses depois é agora o guerreiro grego para a New Yorker ou o economista guerreiro, segundo a Counterpunch. A mudança na descrição espelha as batalhas contra os credores enquanto foi ministro das Finanças grego, mas não se ficou por aí. Para Yannis Varoufakis o combate continua.

Em janeiro disse-me numa entrevista, que antes de entrar no governo que “o Banco Central Europeu (BCE) não tem o mandato para fragmentar a zona euro”. E acrescentou: “e sabes que mais? Acho que não o irão fazer”. Vemos que o BCE teve um papel central na asfixia da economia grega. Fecharam os bancos gregos sem terem um mandato. Foi surpreendido por esta estratégia? 

Fiquei estupefacto com o que vi, mas não posso dizer que tenha sido surpreendido. E não posso dizê-lo porque desde o dia 3 de dezembro o sistema de bancos centrais, que é o Banco Central Europeu, é apenas um, começou o processo de criar uma corrida aos bancos através do governador do Banco Central da Grécia que falou num possível problema de liquidez.

Nunca tinha acontecido na história da banca um governador central proferir essas palavras, pois são suficientes para criar uma crise de liquidez e para levar a uma corrida aos depósitos. Não há nada mais fácil neste mundo do que um banco central criar uma corrida aos depósitos, basta dizer aos depositantes que as suas poupanças não estão seguras e os depositantes correm para os bancos para levantar as poupanças e a profecia concretiza-se apenas porque foi proferida.

Por isso, mesmo antes de sermos eleitos o Banco Central Europeu começou a ser conivente, a apoiar, a engendrar uma corrida aos bancos comerciais gregos de forma a asfixiar o governo que tinha um mandato para desafiar as políticas da Troika, da qual o BCE infelizmente faz parte, e que resultaram num fracasso total nos últimos cinco anos.

Professor, estamos a falar de um sistema fiduciário. Podemos então confiar nele? 

Acredito que os Europeus não têm qualquer razão para acreditar nas instituições que criaram. Todas as reuniões, quase todas do Eurogrupo, todas as reuniões do Banco Central Europeu (BCE), resultaram em decisões sub-ótimas para o interesse dos Europeus. A razão pela qual a crise continua passados cinco, seis anos, a razão pela qual Portugal não está fora da crise, Espanha, Itália, França e até a Alemanha, está a debater-se nas turbulentas águas da crise europeia.

A razão para este falhanço é que as nossas instituições não conseguiram responder racionalmente aos diferentes desafios desta crise. Por isso, não, não acho que devemos confiar nelas. Acho que os europeus têm o dever para com eles próprios de exigirem mais das nossas instituições.

E podemos confiar no sistema financeiro, na banca? 

Olhe, o sistema bancário europeu colapsou em 2008, 2009, 2010, tal como os bancos de Wall Street e da City londrina colapsaram. Desde então houve uma enorme quantidade de dinheiro dado aos bancos, pelos bancos centrais e pelos contribuintes, da Alemanha a Portugal, à Irlanda, à Grécia.

Resolveu o problema? Adiou o problema, os bancos já não estão no estado desesperado de 2010 e 2011, mas ainda estão sujeitos a enormes buracos nos balanços, há riscos muito grandes devido aos empréstimos que podem não ser pagos e deitar os bancos abaixo e tragicamente a união bancária que disseram que criaram na Europa não é verdadeira.

Se um banco português enfrentar problemas no futuro não será tratado da mesma forma que um banco alemão ou holandês, simplesmente porque o governo português não tem a mesma capacidade para o resgatar. Isto quer dizer que ainda temos um sistema bancário fragmentado, que está a piorar devido à ligação íntima entre os bancos problemáticos e os resultados fiscais, e Portugal é um bom exemplo. Infelizmente enquanto o sistema bancário foi mantido à tona, não foi fortalecido, de forma de enfrentar a próxima tempestade .

Muitos estão surpreendidos com o seu otimismo e esperança para alterar a arquitetura disfuncional da União Europeia. A confrontação grega não é a prova de que reformar a União Europeia (UE) é uma espécie de utopia? 

A verdade é que um pequeno governo sozinho, não pode levar o resto da zona euro na direção da racionalidade e do debate que vai melhorar, solidificar e democratizar a Europa. Isso é o que foi provado. Mas juntas muitas nações europeias, se juntarmos forças, podemos fazê-lo.

Por isso é que dedico todas as minhas energias para criar um diálogo europeu, juntando democratas e pessoas que estão unidas pelo senso comum, em vários membros da zona Euro de forma a juntar todos para pressionar as nossas instituições.

Mas estas pessoas pertencem a movimentos minoritários. Estamos falar de Fassina em Itália, Mélenchon em França e de Lafontaine na Alemanha. Estas ideias precisam do apoio de muitos países na Europa que precisariam de ser tomados por movimentos minoritários. Isso é viável?  

Não seria viável e tu estarias completamente certo. E é por isso que não acredito numa aliança de partidos políticos. Mélenchon em França, Fassina em Itália, eu na Grécia. Não é para isso que eu estou a trabalhar.

O que precisamos não é uma aliança de partidos marginais, ou mesmo de maioritários. Mesmo se os partidos socialistas, os partidos social-democratas se juntarem, ou mesmo os democratas cristãos se juntarem, isto não vai resultar. O que precisamos é de uma aliança pan-europeia de europeus independentes das suas filiações políticas.

Os maiores problemas da zona euro vão para além das diferenças entre partidos nacionais. Acredito que podemos ter um consenso pan-europeu entre pessoas de esquerda, social-democratas, liberais conservadores honestos ao longo de ideias simples.

Que deve haver transparência nos processos de decisão, que devemos encontrar soluções racionais para lidar com a crise da dívida, da união bancária. Um mecanismo para transformar as poupanças em projetos de investimento especialmente em torno das energias verdes, projetos para combater a pobreza.

Todos estes, são projetos europeus, que devem ser europeizados e acredito que europeus em todos os partidos políticos podem juntar-se a um nível europeu, isto é muito importante, para lidarem com estes problemas europeus.

Este seria um movimento de cidadãos? Como podem os cidadãos europeus juntar-se a este movimento que está a tentar formar? 

Bem, isto é trabalho em progresso. O que estou a fazer de agora é falar consigo, falar com centenas de milhares de pessoas em toda a Europa. Para ser um movimento genuíno não pode ter um líder, não pode ter uma estrutura partidária, uma hierarquia, tem de emergir espontaneamente da base, como disse é um movimento de cidadãos.

É um grande Podemos, um Podemos europeu?

Não, e digo não refletidamente, porque o Podemos é um partido político em Espanha, quero sublinhar a importância de ir para além dos modelos políticos nacionais que temos na nossa cabeça. Tem de ser um movimento de cidadãos, uma frente, um espaço de diálogo. Nos próximos meses alguns de nós vão publicar um manifesto, muito simples, nada de muito ideológico, a apelar às pessoas para se juntarem. E a beleza disto é que se o fizerem então eu e tu não podemos prever como isto vai evoluir. Pode crescer organicamente e criar aquilo que a Europa tem em falta.

Os americanos dizem “Nós, o Povo”…e isso, apesar dos muitos deméritos e desvantagens do sistema democrático norte-americano, isto é muito importante, pensarem neles próprios como ‘Nós, o Povo”. É altura de na Europa fazermos o mesmo.

Tem um plano A, também assinou um plano B, mas se esses planos falharem, acha que a saída do euro, já falou sobre este tema em muitos fóruns, mas acha que esta solução deve ser considerada como possibilidade quando negoceia com os credores? Temos de estar preparados para tudo, não? 

Claro que temos de estar preparados para tudo, mas há uma grande diferença em dizer que está preparado para o colapso do euro ou uma saída, de dizer que isto é algo com que se deve ameaçar o outro lado da negociação com isso.

Eu nunca ameacei a Troika, o Eurogrupo, com a saída da Grécia do Euro. Sempre disse que não estava no nosso radar, era algo que não considerava. Mas claro, quando o ministro das Finanças alemão se vira para ti e diz: “devias sair do euro e eu vou trabalhar para te expulsar do euro”, então é claro que temos de ter um plano de contingência, tal como o ministro da Defesa tem de ter um plano de contingência para o caso de haver um plano de invasão, mas nenhum ministro da Defesa quer que o seu país seja invadido.

Portanto, o nosso plano B, C, D, X, Y, Z são todos planos para solidificar a zona euro, para a fortalecer, para a transformar num lugar onde os europeus do norte, do sul, do este, do oeste, do centro podem imaginar um futuro de prosperidade partilhada. Pode haver muitas formas de o fazer, podemos ter muitos planos de contingência. Podemos ter modelos de pagamentos paralelos todos denominados em euro, podemos utilizar as instituições existentes de forma criativa, mas não, não acho que devemos começar a ameaçar-nos uns aos outros com a saída do euro.

Professor, teve muitas discussões a nível europeu e fala recorrentemente da necessidade de democratizar as instituições europeias mas deixe-me perguntar-lhe o seguinte: como foi possível, para o autor que explicou o Minotauro Global, acreditar que conseguia convencer os líderes europeus com os seus argumentos? Porque eles têm outros interesses, não é uma discussão racional?

Isso é correto e foi provado na prática, não estavam interessados mesmo em ter uma conversa sensata, mas a beleza da política é que se os argumentos forem suficientemente fortes e poderosos então vão convencer a maioria das pessoas, não as que estão no Eurogrupo, no FMI, no BCE, mas as pessoas lá fora. E se for um número suficientemente grande e se convencerem com estes argumentos e se contribuírem para eles, então as pessoas que nos estão as representar tem de ouvir ou serão postas de lado. Este é o jogo da política.

Referiu o meu livro, o Minotauro Global, a primeira parte do livro descreve o período pós-guerra, da era de Bretton Woods, que era maravilhosa!  Produziu as décadas de ouro do capitalismo global. Não aconteceu porque os burocratas decidiram, mas sim porque nos anos 30 muitas pessoas sofreram devido a políticas falhadas, austeridade, cortes, desvalorização competitiva, de confrontação e essa grande depressão deu origem a cidadãos e políticos que argumentaram e lutaram, e que no final da guerra criaram um sistema que permitiu a centenas de milhões de pessoas imaginarem um mundo melhor. Podemos fazer isto outra vez.

Gikas Hardouvelis [n.d.r antecessor de Varoufakis nas Finanças gregas] disse-me numa entrevista que Portugal sempre teve uma postura decente para com a Grécia nas reuniões da União Europeia. Confirma isto? 

Sim, confirmo. Mas isso é muito simples: o governo português implementou uma variante do programa de austeridade aplicado na Grécia, digo variante porque foi uma versão muito muito suave do aplicado no meu país em Portugal.

Os resultados foram muito fracos em Portugal. Acho que qualquer tentativa de retratar Portugal como história de sucesso está fora da realidade. O montante total de divida, privada e pública, estagnação da economia, perderam 400 mil jovens formados para outros países de forma a manter o desemprego em baixo, por isso, o Governo português tem aplicado com entusiasmo as medidas que o meu Governo, quando eu fazia parte, se opunha.

Portanto para eles era importante oporem-se ao nosso Governo e mostrarem que não eram nossos aliados no Eurogrupo. Acho que foi um erro do Governo português, é uma história triste que os políticos europeus não olhem para a racionalidade das políticas económicas e em detrimento façam joguinhos políticos… mas foi assim. Foi um jogo feito por Portugal, mas também por Espanha. Reconhece que a capitulação grega diminui a possibilidade de surgirem novas alternativas, nomeadamente em Espanha.

Quando entrevistei Juan Carlos Monedero, do Podemos, garantiu-me que ainda podem ganhar as eleições legislativas deste ano, em Espanha… quão importante seria isto para a Europa?

Bem, não quero interferir no processo político de outro Estado-membro como Espanha ou Portugal.  As forças politicas em Espanha que estejam interessadas em virar a página, procurando uma alternativa à estratégia de desvalorização competitiva adotada pelo Governo de Rajoy, essas forças políticas progressistas devem considerar que Espanha é uma economia bastante significativa, não é a Grécia, é bastante mais importante que a Grécia, e devem planear a estratégia no Eurogrupo e no Conselho Europeu se ganharem as eleições.

E devem ir para as eleições, ir ao povo espanhol, e explicar o que querem fazer em Espanha, bem como as políticas que querem apresentar à União europeia, ao Eurogrupo. Essa é a forma de ganhar o poder, essa é a forma de mudar a Europa.

Disse que Matteo Renzi, a esperança dos social-democratas europeus, vendeu a alma e integridade quando lutou contra o Governo de Tsipras e do Syriza.Também imagino que esteja desapontado com outros partidos socialistas, nomeadamente com o Partido Socialista Francês, com o SPD alemão. Acha que os partidos socialistas europeus ainda podem ser parte do movimento alternativo de qual tem falado?

Bem , antes de mais deixe-me ser bem preciso quanto ao que eu disse sobre o primeiro-ministro Matteo Renzi. Eu não disse que ele lutou contra o nosso Governo e contra o primeiro-ministro Tsipras.  Ele não lutou contra nós, mas ficou a ver serenamente enquanto o nosso governo era esmagado. Ele não mexeu os seus músculos políticos para nos ajudar e no final deste processo político triste encorajou o primeiro-ministro Tsipras a render-se.

Esse foi um enorme falhanço da parte dele, porque mesmo que não quisesse saber da Grécia, a não associação ao Governo grego deu um enorme golpe na democracia europeia, teve consequências nefastas para a economia, incluindo para Itália e para o resto da Europa, e nesse sentido, Matteo Renzi e os outros líderes social-democratas que desempenharam o mesmo papel vão ser julgados de forma violenta pela história.

Acredito que vão ser julgados negativamente pelos seus eleitores. Se em algum ponto virem o erro da sua estratégia, eu acredito em perdoar e esquecer e até acredito no contexto do que estivemos a discutir antes. Devemos estar preparados para receber todos os europeus que queiram virar a página, sejam antigos social-democratas, liberais, democratas-cristãos, de esquerda, de forma a começar a fazer o que devíamos ter feito há cinco anos: estabilizar a zona euro e para esta interminável crise da dívida e de deflação que está a roubar a europa e que apenas fortalece os misantropos, os racistas, os alternacionslistas, os que de facto odeiam a Europa.

Sabe que há a possibilidade de se formar um governo de esquerda em Portugal. Quais devem ser as principais prioridades a adotar? 

Tenho tentado acompanhar os desenvolvimentos na política portuguesa. Notei que a discussão dentro do PS anda à volta das obrigações de Portugal com o Eurogrupo, com a Troika em particular. E ouvi alguns deputados do PS a dizerem que aceitariam ir para o Governo com a esquerda e os comunistas, desde que se aceite que as regras do Eurogrupo, da Troika, de Maastrich, do Pacto de Estabilidade, sejam respeitadas.

Acho que isso é um grande erro, e digo isso porque estas regras não podem ser respeitadas e ninguém as respeita. Nem mesmo os países grandes. Temos descoberto na Europa que as nossas regras são tao irracionais que mesmo que as queiramos cumprir não conseguimos. Por isso, o BCE quebra as suas próprias regras ao comprar divida portuguesa, espanhola, italiana.

Temos resgates que não era suposto termos, por isso, qualquer Governo que prometa cumprir as regras está no mau caminho. O que eu acho que um Governo progressista em Portugal, Espanha, França, em qualquer lado, deve fazer é prometer iniciar um processo de discussão racional, uma discussão racional democrática e multilateral, sobre como as regras tem de evoluir, que novas regras precisamos e como interpretar as regras atuais.

Este é o maior contributo que o novo governo em Portugal pode dar. Se qualquer Governo português tentar recuperar a Economia portuguesa e a sociedade dentro das regras atuais, então está destinado a falhar, não importa se as suas intenções são muito boas ou não.

Falando de outro assunto, dos refugiados. A Europa deve ou não adotar uma política de fronteiras abertas? 

Devemos com toda a certeza adotar uma política de fronteiras abertas quando se trata de refugiados! É humanidade básica. Quando alguém bate à tua porta e está a sangrar, foi atingido, tens a obrigação moral de abrir a porta e deixá-lo entrar. É tão simples quanto isso.

Milhões de refugiados? 

Sejam quantos forem! Se um grande número de pessoas bater á tua porta, esta noite, e tiverem a ser ameaçados por rufias, acredito que vás abrir a porta e deixá-los entrar a todos, não escolhes quem entra. Vais fazer tudo para os acolher. É isso que nós como indivíduos, seres-humanos morais fazemos todos os dias e é isso que devíamos fazer enquanto União Europeia. Mas há uma diferença. Claro, entre refugiados e migrantes económicos, mas como me perguntaste sobre os refugiados, estou a ser bastante claro: é a hora de nós europeus nos voltarmos a portar como seres-humanos outra vez.

Mas precisa de aliados para implementar estas políticas.

Não, preciso de seres-humanos, preciso de seres-humanos, não preciso de aliados, acredito que cada europeu decente concordaria comigo.

Mas esses europeus deveriam estar no governo e vemos que não estão… será que Corbyn no Reino Unido, Sanders e até Hillary nos Estados Unidos, Iglesias em Espanha são os seus aliados? Quem são os seus aliados professor Varoufakis?

Todas as pessoas bem-intencionadas e decentes, incluindo a chanceler Merkel que na questão dos refugiados tem sido espetacular. Mostrou como uma política, conservadora, pode estar á altura da ocasião. Devemos parar de pensar em termos de nós e eles, dos meus amigos e inimigos, de sectarismo. Devemos olhar uns para os outros como europeus e ver como os nossos valores-comuns podem transformar a Europa naquele lugar que imaginamos há muitos anos, quando Portugal e a Grécia entraram na União Europeia, como o centro da civilização.

Varoufakis, é um guerreiro contra a austeridade, mas a ideologia continua a sobreviver. 
Mesmo depois dos resultados e de alguns ideólogos como Reinhart eRogoff terem sido desmentidos. Até dentro do FMI a austeridade é controversa. Porque consegue sobreviver?

Porque não sobrevive na prática. A austeridade não é o assunto, é uma cortina de fumo. Quando há uma crise financeira, pergunta-se quem vai pagar. As forças conservadoras da sociedade acreditam que devem ser os membros mais fracos da sociedade e começam a falar da austeridade, da prudência fiscal, da necessidade de reduzir os défices e por aí fora.

O verdadeiro objetivo da austeridade é assegurar que os mais fortes e poderosos, os ricos, pagam quase nada e que o fardo da crise financeira é transferido para os ombros fracos dos cidadãos mais frágeis. Esse é o objetivo claro. Não está em nada relacionado com princípios macroeconómicos prudentes, com finanças públicas.

Basta olhar para os dados: os países que mais austeridade impuseram foram aqueles onde a dívida mais cresceu. Por isso, se a austeridade tem como objetivo reduzir a dívida então é um falhanço claro e não há ninguém que consiga argumentar o contrário. A razão pela qual a austeridade ainda tem proponentes é porque nunca foi para baixar a dívida, foi sempre para conduzir uma forma de guerra de classes contra os mais-pobres.

Sei que não é o Dr. Doom, mas deixe-me perguntar-lhe o seguinte: no seu livro Minotauro Global fala de algumas características do sistema capitalista que criam crises cíclicas. Ainda estão presentes? Devemos esperar uma nova crise em breve? 

Claro que estão presentes e vemos que houve um período nos anos 90 em que o Ben Bernanke falou na grande moderação, Gordon Brown no Reino Unido disse que tínhamos colocado fim ao ciclo de crescimento-crise. Pouco depois tivemos a catástrofe total de 2008. O capitalismo produz crises tal como produz iPhonesMercedes Benz ougadgets espetaculares.

A nossa tarefa como cidadãos é pressionar os nossos políticos para se tornarem políticos de forma a assegurarem que o estado intervém, regula e reduz o tamanho das flutuações nos ciclos económicos, salva centenas de milhões de pessoas à volta do mundo da ignomínia e da dor do desemprego, estabiliza o capitalismo e civiliza-o. Essa é a nossa tarefa, por isso precisamos de democracia. Porque sem democracia as crises do capitalismo tornam-se piores, mais frequentes e mais profundas.

Mas depois de uma crise tão grande como refere no livro, porque não vemos o surgimento de um modelo alternativo, de um novo paradigma?

Essa é uma excelente pergunta. A esquerda tem muito para responder, somos responsáveis. Durante o século XX as grandes ideias de Karl Marx e de outros, Rosa Luxemburgo, foram completamente distorcidas pela esquerda coletivamente e eu aceito a minha quota-parte de responsabilidade como pessoas de esquerda.

A esquerda perdeu a sua alma, transformou o humanismo num gulag, a esquerda perdeu a sua narrativa emancipatória. No interesse da igualdade e justiça sacrificamos a liberdade, criamos hierarquias e partidos comunistas que fizeram nações inteiras e populações sofrer. Então, quando 2008 veio e o capitalismo financeiro colapsou, nós na esquerda não tivemos a autoridade moral para vir para a frente e fazer sugestões.

Os novos movimentos sociais não estavam prontos para avançar com ideias para estabilizar a economia capitalista que colapsou. Por isso, no final as mesmas pessoas que deram origem à crise foram as que se mantiveram no poder para salvarem o mundo da sua criação.

Isso é uma enorme tragédia para o mundo, mas avançamos. A crise ainda não desapareceu, tem diferentes formas, continua a espalhar-se pelo mundo, a crise da zona euro e a arte desta crise. E é tempo de na esquerda e liberais honestos, honráveis que não sejam de esquerda, mesmo de direito, percebam que o capitalismo financeiro está também animicamente e empaticamente em declínio, o modelo do capitalismo que tinha Adam Smith na cabeça, uma abstração de mercado. Devemos juntar-nos e criar novas narrativas sobre como civilizar o mundo.

Professor, se me permite vou fazer-lhe uma única pergunta pessoal. Depois de centenas de entrevistas e discursos ainda não sabemos o que é ou quem é. Diz que é de esquerda, diz que é um marxista errático. O que é isso? É um Social-democrata? Anticapitalista? É libertário? Falamos com os membros do Podemos de Espanha e dizem que gostam de Gramsci, gosta de Gramsci? Onde se encaixa? Qual é a sua etiqueta?

Bem, deixe-me ser franco: eu percebo o mundo pelo prisma de Karl Marx no sentido da sua análise do capitalismo como um sistema magnífico que produz ao mesmo tempo coisas boas e coisas más. Produz muita riqueza, máquinas que nos permitem ser livres de tarefas mais duras, tecnologias que derrotam os preconceitos, mas ao mesmo tempo é um sistema que cria desemprego, enormes crises e pobreza sem precedentes na história do mundo.

Por isso, essa é a minha visão do mundo onde vivemos. Se pegarmos nesta visão dialética de forma séria, obviamente que temos de aprender importantes lições de diferentes perspetivas. Acredito numa perspetiva eclética. Digo às pessoas que sou um marxista libertário e olham para mim de forma estranha, porque acredito que o capitalismo em si restringe a liberdade e produz irracionalidade e esse é o meu criticismo do capitalismo.

Mas ao mesmo tempo acredito que um sistema hierárquico como o da União Soviética produz ditadores e diferentes formas de quebra de liberdade. Por isso compilo as visões de Marx, Keynes, Von Mises, Hayek, Gramsci,que mencionaste, como todos deveríamos fazer.

Todos deveríamos beneficiar da sabedoria de diferentes pensadores, numa tentativa de racionalizar o mundo no qual vivemos, de forma a mudá-lo. Como Marx disse, o objetivo não é apenas compreender o mundo, o objetivo é também mudá-lo.

O Aurora Dourada e o movimento antifascista II

O movimento antifascista: história, organização e estratégia

Se o fascismo esteve presente em certos momentos da História política contemporânea grega e se afirma actualmente, também o movimento antifascista esteve e está presente na luta política, económica e social. Desde o fim da Ditadura dos Coronéis que o movimento fascista tem estado activo, mesmo com altos e baixos. No entanto, começou a fortalecer-se novamente a partir da década de 90, quando a questão da Macedónia exacerbou o nacionalismo grego e as forças políticas de extrema e direita-radical se começaram a organizar novamente e a ganhar um maior foco eleitoral e presença nas ruas gregas. Foi precisamente a existência e fortalecimento do movimento antifascista, bem como a não existência de condições políticas, económicas e sociais favoráveis, que impediram a ascensão do Aurora Dourada, e dos restantes grupos marginais, durante mais de 20 anos, até 2010. À medida que o partido se foi consolidando, também o movimento antifascista se foi alargando, principalmente no seio da juventude, nomeadamente nos estudantes.

O movimento antifascista é um conjunto de organizações e colectivos de várias tendências políticas, desde a esquerda-radical à extrema-esquerda, não deixando de lado os anarquistas, além de pessoas a título individual que simplesmente se opõem ao fascismo e ao que este significa para a vida de milhões de pessoas. De forma alguma pode ser considerado um movimento centralizado, pois uma das suas riquezas é a sua própria descentralização. O que une todas as organizações, colectivos e pessoas a título individual que o compõem é simplesmente a luta contra o fascismo e as suas forças, pois noutros assuntos podem facilmente divergir entre si. Todas as organizações participam no movimento de acordo com a sua própria agenda política e com as capacidades que possuem, marcando manifestações autónomas a que as restantes organizações, colectivos e pessoas a título individual decidem se participam ou não. As assembleias antifascistas são comuns no seio de cada organização ou colectivo, a que se somam as assembleias “gerais” do movimento sempre que tal se justifique. O contacto entre os activistas antifascistas é permanente.

No entanto, há certos momentos em que o movimento antifascista age como um todo, como, por exemplo, no dia de memória do assassinato do rapper Pavlo Fyssas. Neste dia todos os antifascistas se juntam e marcham juntos. Outro dos exemplos é quando alguma entidade pertencente ao movimento antifascista é atacada por forças fascistas, como os Esquadrões de Ataque do Aurora Dourada. Quando tal acontece todo o movimento se organiza e reage em unísono, por meio de manifestações ou até mesmo de retaliações violentas contra as sedes do partido, tal como aconteceu no início dos anos 2000 em Salónica. Após uma assembleia “geral” antifascista decidiu-se retaliar agressivamente contra a sede local do Aurora Dourada, tendo-se reunido 250 antifascistas numa hora. Cercaram o respectivo prédio, fecharam a rua, alertaram os moradores que estava tudo bem e que o alvo era o Aurora Dourada e invadiram o apartamento onde se encontrava a sede local, que foi completamente destruída. Em resposta o Aurora Dourada transferiu a sede para uma rua mais afastada do centro da cidade – que é controlado pelo movimento antifascista –, onde se encontra o tribunal da cidade e o quartel-general das forças de intervenção da polícia. No prédio ao lado da nova sede do Aurora Dourada encontrava-se a sede do sindicato da polícia. A escolha deste local pelas chefias do partido levantou questões sobre a relação entre as forças neonazis e a polícia e seus dirigentes sindicais.

Se analisarmos as práticas do movimento antifascista conseguimos delinear quatro eixos estratégicos orientadores que todas as organizações e colectivos cumprem de forma independente (e dependendo das suas capacidades), que são: 1) criação de colectivos de bairro antifascistas para impedir a expansão das forças fascistas e dos seus eventos pela cidade, organizando manifestações; 2) disputa de influência através da produção de propaganda (flyers, jornais e cartazes), de debates e de grandes eventos antifascistas, como o Festival Antifascista, que todos os anos se dá em Salónica em Junho, ou o Torneio de Kickboxing Antifascista, que se realiza há dois anos consecutivos e que recebeu atletas da Alemanha, Espanha, Itália, Polónia, Holanda, Suíça e, claro, gregos de todo o país, e, por fim, a criação de websites de monitorização das actividades do Aurora Dourada e de call-centers onde as pessoas podem ligar para pedirem ajuda ou comunicar actividades que tenham presenciado ou que saibam que irão acontecer; 3) criação de colectivos de solidariedade para os mais pobres, desempregados e imigrantes, tentando minimizar as suas carências materiais e disputando esta área com os neonazis, que também organizam os seus centros de assistência só para “gregos”; 4) apresentação de alternativas ao fascismo com o aprofundamento de práticas de democracia directa, de auto-gestão, de igualdade e de solidariedade, principalmente nos colectivos de bairro, nos centros de solidariedade e nas assembleias antifascistas. Todos estes quatro eixos se inter-relacionam de forma profunda, compondo uma estratégia transversal perante a sociedade grega. Uma estratégia ofensiva contra as forças fascistas, mas também construtiva, de prevenção, sob as condições que permeiam o avanço social do fascismo.

Durante a sua ascensão o Aurora Dourada espancou e assasinou imigrantes, levando o movimento antifascista a intensificar a sua luta de forma cada vez mais agressiva, enquanto o poder político nada fazia. No entanto, com o assassinato do conhecido rapper antifascista Pavlo Fyssas, em Setembro de 2013, o poder político foi obrigado a tomar medidas contra o partido nazi em consequência de uma enorme pressão da sociedade e de alguns meios de comunicação social. A partir desse momento alguns dos seus altos dirigentes foram acusados de terem montado uma organização criminosa, o que poderá levar à ilegalização do partido como a constituição grega estipula. Tanto o mediatismo como os processos judiciais levaram ao fortalecimento do movimento antifascista, ao mesmo tempo que o Aurora Dourada decidiu acalmar as suas actividades violentas para se poder afirmar como vítima de uma conspiração, publicando vários comunicados de imprensa em que denunciavam o processo judicial e se afirmavam como mártires da sua luta e ideologia. O Aurora Dourada passou à defensiva, quando antes estava à ofensiva. Com o avanço do movimento antifascista e a enorme pressão mediática começou a não poder agir como antes, tendo deixado de controlar vários bairros. Em Salónica, por exemplo, o Aurora Dourada está confinado à sua sede, mas em Atenas a situação é mais complicada, pois é aí que o epicentro da acção do partido se encontra. No entanto, se nas ruas o Aurora Dourada recuou imenso, tal já não se pode afirmar no que concerne à sua actividade parlamentar, como demonstram os resultados das eleições de 20 de Setembro de 2015: 18 deputados conquistados, 6,95% dos votos, mesmo que a abstenção tenha sido a maior de sempre. A sua manutenção como terceira maior força política parlamentar no sistema político grego demonstra que possui um eleitorado fiel e não volátil, o que é uma enorme preocupação.

Perspectivas

A situação actual não nos permite de forma alguma afirmar que uma eventual progressão eleitoral, e mesmo nas ruas, do Aurora Dourada se encontra fora de questão. Mesmo que o partido seja ilegalizado, em consequência do acordão do processo criminal, nada leva a crer que não escolha a via da violência, nomeadamente nas ruas, ou que os seus militantes criem outro partido similar, mesmo que a sua liderança esteja na prisão. Na luta contra o fascismo não basta a via legal, é preciso também impedir o seu avanço político nas várias áreas urbanas e rurais e combater as condições políticas, económicas e sociais que lhe permitem conquistar apoiantes. A luta tem de ser global e não apenas legalista.

Com a assinatura do Terceiro Memorando de Entendimento por parte do Governo Syriza-ANEL, a 13 de Julho de 2015, a situação política, económica e social irá agravar-se, podendo facilitar a expansão do Aurora Dourada ou de outro partido similar. Um provável colapso do Syriza, a grande esperança da maioria dos gregos na luta contra a austeridade e na regeneração de um sistema político deslegitimado, e à medida que for aplicando o terceiro memorando, poderá levar muitos desapontados a escolherem o partido nazi. Perante a instabilidade política e a desordem do dia-a-dia, o discurso autoritário e de ordem do fascismo pode vir a colher frutos. É neste contexto que se considera fundamental a reorganização das forças de Esquerda gregas, nomeadamente da Unidade Popular, para apresentarem propostas políticas que se afirmem como alternativas concretas e reais aos estudantes, trabalhadores, pensionistas e reformados gregos. Uma proposta que tenha em conta os erros da estratégia encetada pelo Syriza nos primeiros sete meses da sua governação, mas mais profunda.

Os próximos meses serão terrivelmente desafiadores para o movimento antifascista, um movimento que até agora mostrou estar à altura, mesmo que sozinho, mas também para toda a Esquerda grega.  Perante a ascensão de forças de extrema e direita-radical no continente europeu temos muito a aprender com o movimento antifascista grego.

Escrito a partir de Salónica, Grécia

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O Aurora Dourada e o movimento antifascista I

Em período de estabilidade e legitimidade do sistema político e de crescimento económico as forças políticas de extrema-direita costumam situar-se à margem da competição eleitoral, pois os seus discursos de ódio e de violência afastam o eleitorado. No entanto, perante uma situação de instabilidade e deslegitimação do sistema político e confrontados com uma severa crise económico-financeira e social estes partidos têm um terreno fértil para crescerem por se assumirem como forças anti-sistema e capitalizarem o descontentamento, principalmente entre o eleitorado de direita e de centro-esquerda. As causas económicas não explicam por si só a ascensão da extrema-direita, tendo também de ser contempladas as causas políticas sistémicas.

À medida que a crise económico-financeira e social grega se foi acentuando depois dos Memorandos com a troika, o Aurora Dourada, um partido que se inspira claramente na ideologia nacional-socialista, obteve um crescimento eleitoral que surpreendeu, ao mesmo tempo que consolidava a sua implantação na sociedade grega, principalmente nos bairros mais atingidos pela pobreza e desemprego. A sua ascensão eleitoral começou com a eleição do seu líder, Nicos Michaloliakos, para o Conselho Municipal de Atenas nas eleições autárquicas de 2010 com 5,29% dos votos. Nas eleições seguintes o partido continuou a sua ascensão, tendo-a consolidado. Nas eleições legislativas de Maio de 2012 elegeu 21 deputados (6,97% dos votos) e nas de Junho do mesmo ano elegeu 18 deputados (6,92%), fortalecendo a sua posição eleitoral e parlamentar mesmo que tenha perdido três deputados. Pela primeira vez desde o pós-guerra um partido de extrema-direita tinha entrado num parlamento nacional europeu, afirmando-se como a terceira maior força política parlamentar do sistema político grego. Ao mesmo tempo o bipartidarismo grego, entre o Nova Democracia e o PASOK, colapsava, originando novos fenómenos políticos, como a ascensão do Syriza como segunda maior força parlamentar. Nas eleições autárquicas de 2014 o Aurora Dourada conseguiu eleger deputados municipais para todas as autarquias em que apresentou listas eleitorais, o que demonstra o seu avanço em quatro anos: de apenas um lugar no Conselho de Atenas passou a ter deputados municipais em quase todas as autarquias. Nas eleições europeias e legislativas de Janeiro e Setembro de 2015, o Aurora Dourada continuou a consolidar-se eleitoralmente, mesmo sendo alvo de processos criminais após a morte do rapper antifascista Pavlo Fyssas em Setembro de 2013. Nas eleições europeias elegeu três eurodeputados (9,4%), nas legislativas de Janeiro elegeu 17 deputados (6,28%) e nas de Setembro de 2015 18 (6,95%). Estes resultados demonstram que o Aurora Dourada conseguiu consolidar o seu sucesso eleitoral apesar do assassinato de Pavlo Fyssas, dos respectivos processos criminais que alguns dos seus dirigentes de topo são acusados, incluindo o seu líder, por criarem uma organização criminal e pelas declarações de responsabilidade política no assassinato de Fyssas dois dias antes das eleições de Setembro de 2015. Os resultados eleitorais do partido apesar de todos estes acontecimentos são deveras preocupantes, pois demonstram possuir um eleitorado fiel e não volátil.

Aurora Dourada: nascimento, ideologia e actividades

É importante referir que o Aurora Dourada recupera a cultura autoritária que caracteriza certos períodos da História contemporânea grega: a brutal ditadura do general Ioannis Metaxas (1936-41), a ocupação nazi e o colaboracionismo de certos sectores da direita grega com os ocupantes (1941-44) e a ditadura dos Coronéis (1967-74). As forças fascistas, mesmo tendo sido durante muito tempo residuais e desagregadas, sempre estiveram presentes na política grega, sendo que muitos dos seus apoiantes se encontravam no principal partido de direita, o Nova Democracia. No entanto, com a questão da Macedónia, os discursos nacionalistas ganharam novo ímpeto e com eles as forças de extrema e direita-radical. É na década de 90 que se começa a assistir a um fortalecimento, ainda que residual, das forças fascistas na Grécia. E foi precisamente neste período que o movimento antifascista começou a assumir uma posição cada vez mais essencial na contenção destas forças, mesmo que o próprio movimento não possuísse tanta força como actualmente.

Em Setembro de 2000, com a cisão de uma parte da ala mais radical do Nova Democracia, encabeçada por Georgios Karatzaferis, e a criação de um novo partido de direita radical, o LAOS, a convergência das forças de extrema e direita-radical deu um grande passo. Entre 2000 e 2010 era comum membros do Aurora Dourada integrarem listas eleitorais do LAOS. No entanto, a crescente ascensão do Aurora Dourada e o apoio do LAOS ao Memorando de Entendimento (2010) e ao governo tecnocrata de Lucas Papademos, em 2011, criaram divergências entre os seus militantes e prejudicaram este último em termos eleitorais, enquanto o primeiro crescia, ao mesmo tempo que absorvia alguns dos membros do primeiro. A extrema e direita-radical gregas foram-se concentrando no Aurora Dourada, mesmo com o aparecimento do ANEL de Panos Kammenos em 2010, após a cisão da sua ala com o Nova Democracia, após este ter apoiado e aplicado políticas de austeridade.

O Aurora Dourada nasceu nos ínicios da década de 80, assumindo-se como uma fractura do movimento neo-nazi 4 de Agosto. No início os seus membros apenas publicavam um boletim de ideologia nacional-socialista com pouco sucesso, mas rapidamente começaram a praticar acções violentas, comportando-se mais como um gangue do que como um grupo político, o que caracteriza em parte os neonazis. Foi então que decidiram criar a Associação Popular – Aurora Dourada em 1983, concorrendo pela primeira vez em eleições mais de dez anos depois, em 1994, e tendo obtido um resultado muito marginal na ordem dos 0,11% (7242 votos). Entre o período da sua fundação até às eleições de 2010 o Aurora Dourada oscilou frequentemente entre actividades de violência nas ruas e a disputa de eleições, sem nunca se conseguir impor em ambas as vertentes. No entanto, o despoletar da crise internacional e os seus efeitos na Grécia criaram novas oportunidades ao partido à medida que a deslegitimação do sistema político grego aumentava a par da crise social, ao mesmo tempo que foi consolidando a sua posição política face a outros partidos e militantes, albergando estes últimos. A forte imigração que a Grécia tem acolhido nos últimos anos foi também um factor importante de conquista do seu eleitorado. Como qualquer partido de extrema-direita, o Aurora Dourada culpabiliza a imigração pela crise, pela perda de postos de trabalho e pela severa situação social que a sociedade atravessa, originando um efeito spill-over aos restantes partidos da direita, como é o caso da Nova Democracia, que intensificou o seu discurso e políticas anti-imigração para não perder eleitorado para o Aurora Dourada. Este último conseguiu obter algum controlo sobre a agenda política grega, obrigando os partidos de direita a assumirem posições próximas das suas.

Nas mais de três décadas de bipartidarismo entre o Nova Democracia e o PASOK, os armadores e os empresários da construção civil (e o poder financeiro) financiaram continuamente as suas campanhas eleitorais com o objectivo de influenciar (ou controlar) os governos para se protegerem contra o pagamento de impostos. Historicamente os armadores são um dos poderes privados mais poderosos na Grécia por causa da importância da posição geopolítica do país, possuindo a segunda maior frota mercante do mundo. Já os empresários da construção civil expandiram os seus negócios no país, principalmente após a entrada da Grécia na União Europeia e, mais tarde, com a entrada na zona euro e as respectivas taxas de juro baixas, criando uma bolha imobiliária. Mas com a crise económico-financeira, a aplicação das políticas de austeridade, o acentuar das manifestações dos movimentos operário e social, o colapso do bipartidarismo e a ascensão do Syriza, os armadores e os empresários começaram a financiar o Aurora Dourada para fazer pela via da violência o que os partidos do “arco da governação” não conseguiam. O Aurora Dourada começou a reprimir especificamente os trabalhadores grevistas, os sindicalistas e os militantes de Esquerda de forma violenta com os seus Esquadrões de Ataque, quer de dia quer de noite, sem o poder político reagir. Se os partidos tradicionais não conseguiam travar o movimento operário e a ascensão de uma força política de Esquerda Radical, então os armadores e empresários decidiram apoiar o Aurora Dourada para salvaguardaram a sua taxa de acumulação e os seus privilégios, o seu poder na sociedade grega. Todas as ditaduras na Grécia contaram com o apoio dos armadores, bem como da banca grega.

Com mais dinheiro o partido pôde intensificar a sua propaganda e estruturas locais, dando-se a conhecer às camadas mais desfavorecidas da sociedade grega. À medida que se foi consolidando e os partidos de direita-radical, como o LAOS, foram perdendo eleitores em seu favor, foram ganhando eleitorado, entrando primeiro no Conselho de Atenas e depois no parlamento grego. Com os financiamentos parlamentares fortaleceram ainda mais a sua máquina partidária e propagandística, criando distribuições de roupas e alimentos e uma rede de “solidariedade” chamada “Médicos Gregos” – mas apenas para os “gregos” que o provem ser – e um site on-line, onde todos os dias publicam notícias sobre as suas actividades. Uma das alterações do partido em termos propagandísticos foi o investimento na propagação das suas ideias racistas, nacionalistas, homofóbicas, xenófobas, entre outras, através das redes sociais e das novas tecnologias para chegarem aos jovens, principalmente aos estudantes. No entanto, desde que alguns dos dirigentes superiores, e o partido no geral, se confrontam com processos criminais que as verbas de financiamento do parlamento foram cortadas, o que lhes dificultou o financiamento e, por inerência, a realização de actividades.

As principais características do partido são: grande concentração de poder no líder, o fuhrer Nicos Michaloliakos; forte inspiração no nacional-socialismo; a defesa da superioridade da nação helénica e na separação entre pessoas por meio de identidades étnicas, como raça, sangue e credo religioso; um severo discurso anti-política e sistema; e a rejeição da democracia substantiva. Todas estas características permitem, de acordo com a constituição grega, ilegalizar este partido, acção que os anteriores partidos do “arco da governação” decidiram não encetar. No entanto, podemos ainda acrescentar uma outra característica que poderá, eventualmente, colocar em risco a democracia-liberal grega: a influência que o Aurora Dourada possui entre o aparelho repressivo do Estado, as forças políciais e armadas. São comuns os relatos de o partido e as forças policiais se comportarem de uma forma que parece que trabalham de forma algo coordenada ou, no mínimo, permissiva. É comum as forças de extrema-direita, que possuem um discurso e práticas militarizadas, terem influência nas forças policiais e armadas, principalmente nestas últimas se no passado intervieram na política através de golpes de Estado, como é o caso da Grécia. Um dado concreto é o facto de nas eleições as forças policiais votarem em locais distintos dos restantes eleitores, o que permite apurar directamente o número de votos que vão para a Aurora Dourada no seio da polícia. De acordo com um militante antifascista, se naquele distrito os votos no partido se situam entre os 4%na generalidade dos eleitores, então entre a polícia serão aproximadamente 8%. Ou seja, a polícia vota o dobro no Aurora Dourada que os restantes eleitores dos vários distritos, principalmente entre as forças de intervenção. A permeabilidade das forças policiais aos ideais  nacionais-socialistas do Aurora Dourada é uma questão a ter em conta.

Perante uma situação de instabilidade e deslegitimação do sistema político, uma severa crise económico-financeira e social comparável à da Alemanha pós-guerra e a ascensão de um partido neonazi como o Aurora Dourada, são cada vez maiores as especulações sobre se estaremos, ou não, a assistir à “Weimarização” da Grécia.

Escrito a partir de Salónica, Grécia

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As pesadas sombras da história grega

“Z”, de Costa-Gavras

Em entrevista saída no Público de 24 de Agosto, Dimitris Rapidis, analista do think tank Bridging Europe, de Atenas, constatava um facto: «é a primeira vez desde os anos 1970 que temos um ambiente político tão instável, volátil e frágil». Rapidis fazia também uma previsão com curta margem de risco: «mesmo depois destas eleições, a estabilidade política não vai voltar à Grécia». Ambos, facto e previsão, confirmam uma realidade e uma expectativa conhecidas de quem da Grécia possui mais informação do que aquela que transparece dos soundbytes diários e de uns quantos artigos de economia condicionados pela crise e pelos seus reflexos nas estratégias de governação. Existe, de facto, uma realidade mais profunda, embora raramente abordada, sem a qual toda a análise ou tomada de posição sobre o presente e o futuro do Estado grego corre o risco de ficar incompleta.

Essa realidade começa por contrariar a falsa ideia de que a existência da Grécia é a de uma nação unitária, dotada de um percurso consistente através da História. Ao abordar esse trajeto na sua Histoire de la Grèce Moderne, que começa em 1828, com a emancipação perante o velho Império Otomano, e fecha em 2012, o historiador Nicolas Bloudanis define a ideia como um mito, procurando mostrar de que modo múltiplas clivagens foram mantendo a Grécia independente como um terreno instável e pesadamente minado. Terreno no qual, como foi acontecendo em grande parte da Europa central e oriental ao longo dos últimos dois séculos, qualquer passo em falso comporta fortes possibilidades de produzir consequências imprevisíveis e dramáticas. Não é preciso recuar ao início do século XIX, nem sequer entrar em grandes detalhes, para o compreendermos. Continuar a ler

Afinal é possível cortar a dívida dentro da Zona Euro

Afinal, um perdão da dívida grega dentro da zona euro pode ser possível. Ao contrário do que o primeiro-ministro garantiu, há soluções que podem ser estudadas.

É ilegal assumir dívidas de outros Estados, mas pode ser legal perdoar parte do dinheiro emprestado à Grécia. Quem o garante é o Professor de Direito Carsten Gerner-Beuerle, que abre a porta ao corte na dívida grega… dentro do euro.

«Sim. Do ponto de vista legal, existem diferentes formas de interpretar os tratados, mas acho que há boas razoes para defender que um alivio na divida é compatível com os tratados», diz à Antena 1.

O professor alemão da London School of Economics garante que o Eurogrupo se contradiz ao acolher uma extensão dos prazos de pagamento da dívida, mas ao proibir um corte no valor.

«É uma contradição que sustém o argumento de schauble, por exemplo. não acho que esta distinção seja aceite pelos tratados. Então, suspeito é que existem apenas razoes politicas por tras desta linha argumentativa», explica.

Uma visão diferente tem a Professora de Direito Comunitário Isabel Meirelles… refere ser impossível um perdão direto da dívida, mas com vontade política podem ser encontradas novas soluções.

«Celebrando, por exemplo, um acordo inetrgovernamental, em que os Estados-membro da Zona Euro, e portanto estamos no domínio da intergovernamentalidade nada a opor, aí sim pode haver um perdão da dívida», propõe.

Ou seja, Portugal ou a Alemanha podem perdoar parte do dinheiro que emprestaram à Grécia sem irem contra os tratados. O corte na dívida pode, por isso, ser feito dentro do euro… até porque uma saída temporária da moeda única defendida pela Alemanha não é legalmente possível.

Aqui fica o texto do Carsten Gerner-Beuerle.

Fica aqui também a transcrição da entrevista com o Carsten Gerner-Beuerle, que fiz para a Antena 1 (perdoem alguns erros de transcrição).

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Varoufakis: «Porque votei SIM esta noite»

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Na resolução do Eurogrupo de 20 de Fevereiro, conseguimos que o Memorando de Entendimento (MoU) nunca fosse mencionado. Em vez do memorando, havia, como pré-requisito para uma avaliação bem sucedida, a referência a uma lista com as nossas reformas que deveriam ser apresentadas três dias depois e imediatamente aprovados pelas instituições.

Na verdade, a nossa lista, com a minha assinatura, foi entregue em 23 de Fevereiro. No fim de semana entre 20 e 23 de Fevereiro, trabalhámos loucamente e estivemos, obviamente, em contacto constante com os representantes das instituições para evitar qualquer bloqueio no dia seguinte, 24 de Fevereiro, na teleconferência em que o Eurogrupo deveria aprovar a nossa lista, proposta pelas instituições.

A lista final que enviei, tarde durante a noite de 23 de Fevereiro (ver aqui em Inglês), continha as nossas prioridades (por exemplo, luta contra a crise humanitária, regresso às negociações colectivas, mudança de filosofia quanto à exploração de bens públicos, nenhuns cortes nas pensões auxiliares, etc.), bem como algumas das nossas exigências.

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Jürgen Habermas’s – entrevista (não traduzida) ao “The Guardian”

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“The current crisis can be explained both through economic causes and political failure. The sovereign debt crisis that emerged from the banking crisis had its roots in the sub-optimal conditions of a heterogeneously composed currency union. Without a common financial and economic policy, the national economies of pseudo-sovereign member states will continue to drift apart in terms of productivity. No political community can sustain such tension in the long run. At the same time, by focusing on avoidance of open conflict, the EU’s institutions are preventing necessary political initiatives for expanding the currency union into a political union. Only the government leaders assembled in the European Council are in the position to act, but precisely they are the ones who are unable to act in the interest of a joint European community because they think mainly of their national electorate. We are stuck in a political trap.”

Entrevista na íntegra

Nem Tsipras é Leónidas, nem Bruxelas as Termópilas

Com informações que chegam de diversos lados pode reconstituir-se boa parte daquilo que aconteceu desde a tarde de domingo até à madrugada da passada segunda-feira naquelas salas do edifício de Bruxelas onde decorreu o encontro de chefes de Estado e de Governo. Ao fim de 14 horas de reunião, já ninguém estava em condições de pensar e de decidir de forma serena e equilibrada sobre o que fazer com a dívida grega, pelo que as decisões dali saídas, sendo graves, permanecem em parte negociáveis. Apenas duas coisas parecem ter resultado definitivas daquela amarga maratona negocial: de um lado, a instalação de uma crescente divisão entre os países do norte, comandados pela Alemanha e pela Holanda, e os do sul mediterrânico – com a vergonhosa exceção de Portugal, pois até a Espanha se mostrou mais prudente –, traduzida na defesa da expulsão da Grécia da zona euro ou no dever de a evitar; do outro lado, a imposição de uma situação de cerco, chantagem e humilhação ao primeiro-ministro Alexis Tsipras, confrontado com a inevitabilidade de «morder o pó» e ter de se remeter a uma posição defensiva. O seu estado de tensão e de evidente exaustão foi, no entanto, superado pela exibição de coragem e de maturidade política, traduzidas na capacidade para se bater até ao fim, num combate desigual, para tentar, se não evitar, pelo menos reduzir o impacto da catástrofe que parecia já inevitável. Continuar a ler

O que vai ser votado no parlamento grego

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Já estão no parlamento as medidas de austeridade que o governo grego acordou em Bruxelas. As propostas são votadas esta quarta-feira e exigem mais sacrifícios à população.

O espírito do documento é um aumento global dos impostos. A subida do IVA, o imposto sobre o consumo, é a medida que mais impactos deve ter no bolso dos gregos. Para além disso, o Governo quer duplicar os impostos dos agricultores e aumentar a taxa sobre os produtos de luxo: carros de alta cilindrada, piscinas e barcos vão pagar mais 30%.

Este é o primeiro pacote de austeridade que o primeiro-ministro Alexis Tsipras vai levar a votação no parlamento. Ainda falta aprovar, por exemplo, privatizações no valor de 50 mil milhões de euros. Um em cada cinco deputados do Syriza, o partido do Governo, deverá votar contra. Deverá ser a oposição a garantir a luz verde à austeridade.

As medidas de austeridade foram recusadas em referendo e foi contra elas que o Governo foi eleito. A missão de Tsipras é, por isso, espinhosa. Os opositores ao acordo parecem estar em todo o lado, inclusive dentro do Governo. O líder do partido de coligação, Gregos Independentes, e também ministro Panos Kamenos, anunciou que não pode apoiar este acordo. Também os ministros do Syriza, Lafazanis da Energia e Stratoulis da Segurança Social, não apoiam a proposta. Tal como a presidente do parlamento, Zoe Konstantopoulou, igualmente do Syriza.

Na mesma linha, Yannis Varoufakis, ex-ministro das Finanças e deputado, apelidou o acordo de golpe de estado ditatorial.

A rebelião interna vai tirar a Tsipras a maioria de apoio ao acordo de Bruxelas. Terá, por isso, de convencer na quarta-feira os deputados da oposição, no parlamento… ao mesmo tempo, nas ruas, os funcionários públicos cumprem um dia de greve contra o acordo.

Quem parece apoiar as reivindicações do Governo grego é o FMI que avisou: se os credores querem receber o dinheiro que emprestaram á Grécia, então tem de ser mais generoso.

O impasse nas negociações obrigou os gregos a tomarem medidas drásticas, como o fecho dos bancos. A economia ressentiu-se e a dívida está cada vez mais insustentável.

Por isso, o FMI alertou os responsáveis da zona euro antes de fecharem o acordo com o Governo grego. E deu soluções: um período de carência do pagamento da dívida de 30 anos ou então perdoar parte do valor que os gregos devem.

Mas os responsáveis europeu não seguiram as recomendações do Fundo Monetário Internacional, liderado por Lagarde, que esteve presente nas negociações. Comprometeram-se apenas a tornar os pagamentos dos gregos mais suaves.

A morte do projeto europeu

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Suponha que considera Tsipras um imbecil incompetente. Suponha que quer muito que o Syriza saia do poder. Suponha ainda que daria as boas vindas à saída destes chatos dos gregos do euro.

Mesmo que tudo seja verdade, esta lista de exigências do Eurogrupo é uma loucura. O “hastag” que circulou “ThisIsACoup” é exatamente isso. Vai da crueldade à pura vingança, à completa destruição da soberania e à desesperança e falta de alívio. Era, supostamente, uma oferta que a Grécia não podia aceitar; mas, mesmo assim, é uma traição grotesca a tudo aquilo que o projeto europeu deveria defender.

Haverá alguém que consiga tirar a Europa do limbo? Parece que Mario Draghi está a tentar introduzir alguma sanidade, que Hollande está finalmente a mostrar um pouco de oposição à moral económica alemã com a qual sempre concordou no passado. Mas muitos danos já foram causados. Quem pode confiar na boa vontade alemã depois disto?

Por um lado, a economia ficou quase secundarizada. Mas, mesmo assim, sejamos claros: o que aprendemos nestas últimas duas semanas é que ser um membro da zona euro significa que os credores podem destruir uma economia se sair da linha. E isto não tem nada a ver com austeridade. Sabemos que medidas duras de austeridade sem alívio da dívida é uma política condenada, independentemente do que o país possa estar disposto a aceitar. E neste caso mesmo uma capitulação total da Grécia seria um beco sem saída.

A Grécia vai conseguir uma saída bem-sucedida? A Alemanha vai tentar bloquear uma recuperação? (Infelizmente, este é o tipo de coisas que temos que perguntar.)

O projeto europeu – um projeto que sempre elogiei e apoiei – acaba de ser objeto de um terrível golpe, talvez fatal. E independentemente do que se pense do Syriza, ou da Grécia, não foram os gregos que provocaram esta situação.

Paul Krugman

Original aqui

Grécia: uma oportunidade para a Europa acordar (Slavoj Žižek)

Artigo publicado originalmente no NewStatesman a 6 de Julho de 2015: “Slavoj Žižek on Greece: This is a chance for Europe to awaken”. Tradução realizada por Punkto.

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Lançado numa situação desesperada o “não” inesperadamente forte no referendo Grego foi um voto histórico. No meu trabalho uso muitas vez uma piada bem conhecida da última década da União Soviética sobre Rabinovitch, um Judeu que queria emigrar. No gabinete de emigração, um burocrata pergunta-lhe porquê e Rabinovitch responde: “Há duas razões. A primeira é porque tenho medo que os Comunistas percam o poder na União Soviética e o novo poder atire toda a culpa dos crimes comunistas sobre nós, os Judeus – havendo outra vez os pogroms anti-judeus…” “Mas”, interrompe o burocrata, “isto não faz qualquer sentido. Nada pode mudar na União Soviética, o poder dos Comunistas durará para sempre!”“Bem”, responde Rabinovitch calmamente, “Essa é a minha segunda razão”.

Informaram-me que uma nova versão desta piada circula agora em Atenas. Um grego visita o consulado Australiano em Atenas e pede um visto de trabalho. “Porque é que quer sair da Grécia”, pergunta o responsável. “Por duas razões”, responde o Grego. “Primeiro, estou preocupado que a Grécia deixe a União Europeia, o que levaria a mais pobreza e caos no país….”. “Mas”, interrompe o responsável, “isso não faz qualquer sentido: a Grécia continuará na União Europeia e submeter-se-á a disciplina financeira” “Bem, responde calmamente o Grego, “essa é a minha segunda razão”.

São, então, ambas as escolhas piores, parafraseando Estaline?

Chegou o momento de ir para além dos debates irrelevantes sobre os possíveis erros do governo grego. As apostas estão agora demasiado altas. Que uma solução de compromisso pareça sempre falhar no último momento nas negociações entre a Grécia e os administradores da União Europeia é em si mesmo profundamente sintomático, já que não se tratam definitivamente de questões financeiras – a esse nível, a diferença é mínima. A UE acusa geralmente a Grécia de falar em termos genéricos, fazendo promessas vagas sem pormenores específicos, enquanto os Gregos acusam a UE de tentar controlar o mais ínfimo dos detalhes e impor à Grécia condições que são mais duras que aquelas impostas ao governo anterior. Mas o que está por detrás dessas acusações é um outro conflito, bem mais profundo. O primeiro-ministro Grego, Aléxis Tsípras, assinalou recentemente que se tivesse a oportunidade de se encontrar com Angela Merkel para jantar, estes chegariam a uma solução em duas horas. O que Tsípras pretende dizer é que ele e Merkel, enquanto políticos, tratariam a divergência como questão política, ao contrário dos outros administradores tecnocráticos como o presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem. Se há um emblemático tipo mau nesta história toda é Dijsselbloem cujo lema é :“Se eu entrar no lado ideológico das coisas. Não conseguirei nada”.

Isto leva-nos ao ponto crucial: Tsípras e Yanis Varoufakis (o ex-ministro das finanças que se demitiu a 6 de Julho) falam como se fizessem parte de um processo político aberto onde as decisões são sempre ideológicas (baseadas em preferências normativas), enquanto os tecnocratas da UE falam como se fosse tudo uma questão de pequenas medidas regulatórias. Quando os gregos levantaram questões políticas importantes e rejeitaram essa estratégia, foram acusados de mentir e de evitarem soluções concretas. Mas a verdade aqui está do lado Grego: a negação do “lado ideológico” defendido por Dijsselbloem é a ideologia no seu estado mais puro. Medidas regulatórias aparecem mascaradas (apresentam-se falsamente) como sendo puramente técnicas, quando na verdade são baseadas em decisões politico-ideológicas.

Um exemplo dessa assimetria é o “diálogo” de Tsípras e Varoufakis com os seus parceiros Europeus, que aparece constantemente como um diálogo entre um jovem estudante que quer um debate sério sobre questões básicas e um professor arrogante que, nas suas respostas, humilhantemente ignora a questão central e bombardeia o aluno com reparos técnicos (“Não formulaste isso de forma correcta! Não levaste em conta essa regra”). Ou mesmo o diálogo entre uma vítima de violação que tenta desesperadamente relatar o que lhe aconteceu e um polícia que continuamente a interrompe para pedir pormenores burocráticos. Esta passagem da política propriamente dita para a administração especializada neutra caracteriza todo o nosso processo político actual: decisões estratégicas baseadas no poder são cada vez mais mascaradas como regulações administrativas baseadas num conhecimento especializado neutro, e são cada vez mais negociadas em segredo e impostas sem qualquer consulta democrática. A luta que está em causa é a luta pela leitkultur (cultura dominante) política e económica europeia. Os poderes da UE defendem o status quo tecnocrático que tem deixado a Europa em inércia absoluta durante décadas. Nas suas Notas para a Definição da Cultura, o grande conservador T.S. Eliot assinalava que há momentos onde a única escolha é aquela entre a heresia e a descrença, isto é, quando a única maneira de manter uma religião viva implica realizar uma fractura sectária no corpo principal. Esta é a nossa posição hoje relativamente à Europa: apenas uma nova “heresia” (representada neste momento pelo Syriza) pode salvar o que vale a pena salvar do legado Europeu: a democracia, a confiança, a solidariedade igualitária. A Europa que irá ganhar se o Syriza for derrubado é a “Europa de valores Asiáticos” (que, claro, não tem nada a ver com a Asia, mas com a actual e clara tendência do capitalismo contemporâneo de suspender a democracia)

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Tsipras no Parlamento Europeu

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O InfoGrécia traduziu a discurso que Alexis Tsipras fez ontem no Parlamento Europeu. Merece ser amplamente divulgado e por isso aqui fica:

Senhores Deputados, é uma honra para mim falar neste verdadeiro templo da democracia europeia. Muito obrigado pelo convite. Tenho a honra de me dirigir aos representantes eleitos dos povos da Europa, num momento crítico tanto para o meu país, a Grécia, como para a zona euro e também para a União Europeia como um todo.:

Encontro-me entre vós, apenas alguns dias após o forte veredito do povo grego, seguindo a nossa decisão de lhes permitir expressar a sua vontade, para decidir directamente, para tomar uma posição e para participar ativamente nas negociações sobre o seu futuro. Apenas alguns dias após o seu forte veredito instruindo-nos a intensificar os nossos esforços para alcançar uma solução socialmente justa e financeiramente sustentável para o problema grego – sem os erros do passado que condenaram a economia grega, e sem a austeridade perpétua e sem esperança que tem aprisionado a economia num círculo vicioso de recessão, e a sociedade numa depressão duradoura e profunda. O povo grego fez uma escolha corajosa, sob uma pressão sem precedentes, com os bancos fechados, com a tentativa por parte da maioria dos meios de comunicação social de aterrorizar as pessoas no sentido que um voto NÃO levaria a uma ruptura com a Europa.

É um prazer estar neste templo da democracia, porque acredito que estamos aqui para ouvir primeiro os argumentos para, em seguida, poder julgá-los. “Ataquem-me, mas primeiro ouçam o que tenho para dizer”.

A escolha corajosa do povo grego não representa uma ruptura com a Europa, mas um retorno aos princípios fundadores da integração europeia, os princípios da Democracia, da solidariedade, do respeito mútuo e da igualdade.

É uma mensagem clara de que a Europa – o nosso projecto conjunto Europeu – a União Europeia, ou será democrática ou enfrentará enormes dificuldades de sobreviver, dadas as condições difíceis que estamos a enfrentar.

A negociação entre o governo Grego e os seus parceiros, que serão concluídas em breve, pretende reafirmar o respeito da Europa pelas regras operacionais comuns, bem como o respeito absoluto pela escolha democrática do nosso povo.

O meu governo e eu, pessoalmente, chegou ao poder há aproximadamente cinco meses. Mas os programas de resgate já estavam em vigor há cerca de cinco anos. Assumo total responsabilidade pelo que ocorreu durante estes cinco meses. Mas todos devemos reconhecer que a principal responsabilidade pelas dificuldades que a economia Grega enfrenta hoje, para as dificuldades que a Europa está enfrenta hoje, não é o resultado de escolhas feitas nos últimos cinco meses, mas nos cinco anos de implementação de programas que não resolveram a crise. Eu quero garantir-vos que, independentemente da opinião sobre se os esforços de reforma foram certos ou errados, o facto é que a Grécia, e o povo Grego, fez um esforço sem precedentes de ajustamento ao longo dos últimos cinco anos. Extremamente difícil e duro. Este esforço esgotou as energias do povo Grego.

É claro que tais esforços não tiveram lugar apenas na Grécia. Ocorreram noutros lugares também – e eu respeito totalmente o esforço de outras nações e governos que tiveram que enfrentar e decidir sobre medidas difíceis -, em muitos países Europeus onde foram implementados programas de austeridade. No entanto, em nenhum outro lugar esses programas foram tão duros e duradouros como na Grécia. Não seria um exagero afirmar que o meu país foi transformado num laboratório experimental da austeridade nos últimos cinco anos. Mas todos temos de admitir que a experiência não foi bem sucedida.

Nos últimos cinco anos, o desemprego disparou, a pobreza disparou, a marginalização social teve um enorme crescimento, assim como a dívida pública, que antes do lançamento dos programas ascendia a 120% do PIB, e actualmente corresponde a 180% do PIB. Hoje, a maioria do povo Grego, independentemente das nossas avaliações – esta é a realidade e devemos aceitá-la – sente que não tem outra escolha a não ser lutar para escapar deste caminho sem esperança. E esse é o desejo, expresso da forma mais directa e democrática que existe, que nós, como governo, somos chamados a ajudar a concretizar.

Procuramos um acordo com os nossos parceiros. Um acordo, no entanto, que ponha termo definitivamente à crise. Que traga a esperança de que, no fim do túnel, haja luz. Um acordo que proporcione as necessárias e confiáveis reformas – ninguém se opõe a isso – mas que transfira o fardo para aqueles que realmente têm a capacidade de com ele arcar – e que, durante os últimos cinco anos, foram protegidos pelos governos anteriores e não carregaram esse fardo – que foi colocado inteiramente sobre os ombros dos trabalhadores, os reformados, daqueles que não o podem mais suportar. E, claro, com políticas redistributivas que irão beneficiar as classes baixa e média, de modo que um crescimento equilibrado e sustentável possa ser alcançado.

A proposta que estamos a apresentar aos nossos parceiros inclui:

– Reformas credíveis, baseadas, como disse anteriormente, na distribuição equitativa dos encargos, e com o menor efeito recessivo possível.

– Um pedido de cobertura adequada das necessidades de financiamento de médio prazo do país, com um programa de crescimento económico forte; se não nos concentrarmos numa agenda de crescimento, então nunca haverá um fim para a crise. O nosso primeiro objetivo deve ser o de combater o desemprego e incentivar o empreendedorismo,

– e, claro, o pedido para um compromisso imediato para iniciar um diálogo sincero, um debate profícuo para abordar o problema da sustentabilidade da dívida pública.

Não podem existir assuntos tabu entre nós. Precisamos encarar a realidade e procurar soluções para ela, independentemente de quão difíceis essas soluções possam ser.

A nossa proposta foi apresentada ao Eurogrupo, para avaliação durante a Cimeira de ontem. Hoje, enviaremos um pedido para o Mecanismo Europeu de Apoio. Comprometemo-nos, nos próximos dias, a fornecer todos os detalhes da nossa proposta, e tenho a esperança de que seremos bem sucedidos a dar resposta para atender aos requisitos da presente situação crítica, tanto para o bem da Grécia, como da zona euro. Eu diria que, principalmente, não só por uma questão financeira, mas também para o bem geopolítico da Europa.

Quero ser muito claro neste ponto: as propostas do governo Grego para financiar as suas obrigações e restruturar a sua dívida não se destinam a sobrecarregar o contribuinte europeu. O dinheiro dado à Grécia – sejamos honestos -, nunca chegou realmente ao povo Grego. Foi dinheiro dado para salvar os bancos Gregos e Europeus – mas ele nunca foi para o povo Grego.

Para além disso, desde agosto de 2014, a Grécia não recebeu quaisquer parcelas de pagamento, em conformidade com o plano de resgate em vigor até ao final de junho, pagamentos que ascendem a 7200 milhões de euros. Eles não foram concedidos desde agosto de 2014, e eu gostaria de salientar que o nosso governo não estava no poder entre agosto 2014 a janeiro de 2015. As parcelas não foram pagas porque o programa não estava a ser implementado. O programa não estava a ser implementado durante esse período (ou seja, agosto de 2014 a janeiro de 2015) não por causa de questões ideológicas, como é o caso hoje, mas porque o programa então, como agora, não possuía consenso social. Na nossa opinião, não é suficiente um programa estar correto, é também importante para que seja possível a sua implementação, que exista consenso social, a fim de que ele seja implementado.

Senhores Deputados, ao mesmo tempo que a Grécia estava a negociar e a reivindicar 7200 milhões de pagamentos, este teve que pagar – às mesmas instituições – parcelas no valor de 17500 milhões de euros. O dinheiro foi pago a partir das parcas finanças do povo Grego.

Senhores Deputados, apesar do que mencionei, eu não sou um daqueles políticos que afirma que os “estrangeiros maus” são os responsáveis pelos problemas do meu país. A Grécia está à beira da falência porque os anteriores governos Gregos criaram, durante muitos anos, um estado clientelar, apoiaram a corrupção, toleraram ou mesmo apoiaram a interdependência entre a política e a elite económica, e ignoraram a evasão fiscal de vastas quantidades de riqueza. De acordo com um estudo realizado pelo Credit Suisse, 10% dos Gregos possuem 56% da riqueza nacional. E esses 10% de Gregos, no período de austeridade e crise, não foram tocados, não contribuíram para os encargos como os restantes 90% dos Gregos têm contribuído. Os programas de resgate e os Memorandos nem sequer tentaram lidar com estas grandes injustiças. Em vez disso, infelizmente, exacerbaram-nas. Nenhuma das supostas reformas dos programas do Memorando melhoraram, infelizmente, os mecanismos de coleta de impostos que desabaram apesar da ânsia de alguns “iluminados”, bem como de funcionários públicos justificadamente assustados. Nenhuma das supostas reformas procurou lidar com o famigeradamente conhecido triângulo de corrupção criado no nosso país há muitos anos, antes da crise, entre o establishment político, os oligarcas e os bancos. Nenhuma reforma melhorou o funcionamento e a eficiência do Estado, que aprendeu a operar para atender a interesses especiais em vez do bem comum. E, infelizmente, as propostas para resolver estes problemas estão agora no centro das atenções. As nossas propostas centram-se em reformas reais, que visam mudar a Grécia. Reformas que os governos anteriores, a velha guarda política, bem como aqueles que conduziram os planos dos Memorandos, não quiseram ver implementadas na Grécia. Esta é a verdade pura e simples. Lidar eficazmente com a estrutura oligopolista e as práticas de cartel em mercados individuais – incluindo o mercado não regulado de televisão – o reforço dos mecanismos de controlo em matéria de receitas públicas e o mercado de trabalho para combater a evasão e a fraude fiscais, e a modernização da Administração Pública constituem as prioridades de reforma do nosso governo . E, claro, esperamos o acordo dos nossos parceiros com estas prioridades.

Hoje, vimos com um forte mandato do povo Grego e com a firme determinação de não chocar com a Europa, mas de chocar com os interesses velados no nosso país, com as lógicas e atitudes estabelecidas que mergulharam a Grécia na crise, e que têm um efeito de arrastamento para a Zona Euro, também.

Senhores Deputados,

A Europa está numa encruzilhada crítica. O que chamamos de crise Grega corresponde à incapacidade geral da zona euro de encontrar uma solução permanente para a crise da dívida auto-sustentável. Na verdade, este é um problema europeu, e não um problema exclusivamente grego. E um problema europeu requer uma solução europeia.

A história europeia está repleta de conflitos, mas de compromissos também. É também uma história de convergência e de alargamento. Uma história de unidade, e não de divisão. É por isso que falamos de uma Europa unida – não devemos permitir que ele se torne numa Europa dividida. Neste momento, somos chamados a chegar a um compromisso viável e honroso a fim de evitar uma ruptura histórica que iria reverter a tradição de uma Europa unida.

Estou confiante de que todos nós reconhecemos a gravidade da situação e que responderemos em conformidade; assumiremos a nossa responsabilidade histórica.

Obrigado.

Declaração de Eric Toussaint sobre a bela vitória histórica do NÃO na Grécia

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A bela vitória histórica do NÃO mostra mais uma vez que os cidadãos e as cidadãs da Grécia se recusam a aceitar a chantagem dos credores. Como mostra o relatório preliminar da Comissão para a verdade sobre a dívida grega, o Estado grego dispõe de vários argumentos legais para suspender o pagamento ou repudiar unilateralmente as dívidas ilegítimas, ilegais e/ou odiosas.

Esse ato soberano fundamenta-se nos seguintes argumentos:

1. a má fé dos credores (o FMI, os 14 Estados-Membros da zona euro, o BCE, a Comissão Europeia e o FEEF), que levaram a Grécia desde 2010 a violar o direito interno e as suas obrigações internacionais em termos de proteção dos direitos humanos;

2. a superioridade dos direitos humanos face aos acordos assinados entre os governos anteriores e a Troika;

3. o uso de coerção por parte dos credores;

4. a imposição de condições que violam de forma flagrante a soberania da Grécia e que violam a sua constituição;

5. o direito internacional autoriza os Estados a tomarem contra-medidas de autodefesa face a atos ilegais ou ilegítimos cometidos pelos seus credores que, deliberadamente, prejudicaram a sua soberania fiscal e obrigaram a assumir uma dívida odiosa, ilegal, ilegítima, que viola o direito à autodeterminação económica e os direitos humanos fundamentais.

Em relação à insustentabilidade da dívida, as autoridades gregas têm legalmente o poder de invocar o principio da necessidade para fazer frente a uma situação excecional, a fim de proteger os interesses essenciais da sua população face a um perigo grave e iminente.

Na situação grega de crise humanitária, o Estado pode ser dispensado de cumprir as suas obrigações internacionais em termos de dívida, porque essa dívida aumenta o perigo existente, como acontece com as dívidas reclamadas pelo Eurogrupo e pelo FMI. Finalmente, os Estados têm o direito de se declararem insolventes, quando a continuação do pagamento da dívida se torna insustentável. Nesses casos, não cometem atos ilegais.

A dignidade do povo grego vale mais do que uma dívida ilegal, ilegítima, odiosa e insustentável.

Eric Toussaint